18 abril 2009

Os amigos da onça


Outra circunstância fantástica que teve esta visita a Trancoso chama-se Pindorama. A segunda noite na cidade levou-nos a fazer o roteiro das tais lojas do Quadrado. Uma delas expunha peças genuínas de artesanato indígena, fruto de garimpo de arte pelas estradas mais inóspitas do Brasil. Encantei-me por uma onça de madeira do Alto Xingu, de uma reserva índia perdida no Mato Grosso, esculpida à mão e pintada com jenipapo. Passámos a ir visitá-la todas as noites, pelo que criámos amizade com pessoas muito interessantes e queridas, como o Otávio, dono da loja; o Hélio, outro elemento da equipa Pindorama; o Seu João, pescador nas madrugadas e roceiro nas tardes, nativo dono da casa onde está a loja e – mais importante - das mesas em frente à loja, onde joga dominó com os amigos, conversa com quem passa e onde o Henrique teve o privilégio de festejar os anos; a Dona Glória, mulher do Seu João e parteira de Trancoso, por cujas mãos já passaram mais de 200 "filhos de pegação" e que - por falar em natalidade - o destino me apresentou no dia dos anos do meu filho, o mesmo dia em que também ela tinha sido mãe do Careca; a Nely, exemplo bem acabado de uma baiana linda, filha de Seu João e Dona Glória, irmã de Careca e mãe de Serena, uma das grandes amigas que o Henrique conquistou no Quadrado.
Dificilmente poderíamos ter tido mais sorte com os amigos que a onça nos apresentou...

Pousada Encantada


A Pousada Encantada, que encontrámos por acaso a 150 metros do Quadrado, foi mais uma excelente surpresa que esta viagem nos reservou. Praticamente por nossa conta, confortável, com um carisma mineiro que é a cara dos donos, a Kelly e o Sérgio, e com um dos melhores “cafés-da-manhã” que temos comido - e olhem que andamos peritos nisto! No penúltimo dia, todos os hóspedes que lá se juntaram, como que escolhidos a dedo, organizaram um churrasco e lá passámos horas divertidas, a beber cerveja, a comer carne e peixe na brasa e a trocar ideias.

Trancoso, Bahia

Era um facto que nós já sabíamos, à partida: Trancoso seria um dos sítios preferidos desta viagem. E confirmou-se. Apesar de já não ser novidade, foi onde ficámos mais tempo, sem a mínima vontade de sair. Parece-me que me custaria menos sair de lá para voltar para Portugal do que para continuar a viagem. Pela simples razão de a primeira opção implicar a obrigação de um voo que não espera e a segunda só depender da nossa iniciativa. E, pelos vistos, o Henrique ficou a partilhar da nossa opinião.
Viemos por uma semana, ficámos 17 dias. Começa a ser tradição adiar o regresso de Trancoso…



Trancoso é um caso de paixão fácil. O encantador Quadrado, um rectangular pedaço de chão relvado, é ladeado por casas de bonecas e rematado, ao fundo e à beira do mirante, por uma igreja jesuíta de 3 séculos. Quem lá mora são nativos ciosos e vaidosos da sua herança. Ou pousadas, restaurantes e lojas de requinte que, entretanto, lá se instalaram. Abaixo da falésia, as praias não são modestas na beleza natural. Cada vez que olho para esta paisagem é-me mais fácil imaginar o que Pedro Álvares Cabral e toda a tripulação terá pensado, quando viu isto pela primeira vez…

12 abril 2009

Feliz Páscoa

Jesus No Xadrez

No tempo em que as estradas
Eram poucas no sertão
Tangerinos e boiadas
Cruzavam a região
Entre volante e cangaço
Quando a lei
Era a do braço
Do jagunço pau-mandado
Do coroné invasô
Dava-se no interiô
Esse caso inusitado

Quando o Palmeira das Antas
Pertencia ao capitão
Justino Bento da Cruz
Nunca faltô diversão
Vaquejada, canturia
Procissão e romaria
sexta-feira da paxão

Na quinta-feira maió
Dona Maria das Dores
No salão paroquial
Reuniu os moradores
Depois de uma preleção
Ao lado do capitão
Escalava a seleção
De atrizes e atores

Todo ano era um Jesus
Um Caifaz e um Pilatos
Só não mudavam a cruz
O verdugo e os maltratos

O Cristo daquele ano
Foi o Quincas Beija-flor
Caifaz foi Cipriano
Pilatos foi Nicanô

Duas cordas paralelas
Separavam a multidão
Pra que pudesse entre elas
Caminhar a procissão

Quincas conduzindo a cruz
Foi num foi adivirtia
O Cinturião perverso
Que com força lhe batia

Era pra bater maneiro
Bastião num intidia
Divido um grande pifão
Que tomou naquele dia
D'um vinho que o capelão
Guardava na sacristia

Cristo dizia:
- Ô rapais, vê se bate divagar
Já to todo incalombado
Assim num vô agüentar
Tá cá gota pra duer
Ou tu pára de bater
Ou a gente vai brigar
Jogo já essa cruis fora
Tô ficando aperriado
Vô morrê antes da hora
De ficar crucificado

O pior é que o malvado
Fingia que num ouvia
E além de bater com força
Ainda se divirtia
Espiava pra Jesus
Fazia pôco e dizia:
- Que Cristo frôxo é você?!
Que chora na procissão
Jesus, pelo que se sabe
Num era mole assim não
Eu to batendo com pena
Tu vai vê o que é bom
Na subida da ladeira
Da venda de Fenelom
O côro vai ser dobrado
Até chegar no mercado
A cuíca muda o tom

Naquele momento ouviu-se
Um grito na multidão
Era Quincas
Que com raiva
Sacudiu a cruz no chão
E partiu feito um maluco
Pra cima de Bastião
Se travaram no tabefe
Pontapé e cabeçada
Madalena levou queda
Pilatos levou pancada
Deram um cacete em Caifaz
Que até hoje num faz
Nem sente gosto de nada

Dismancharam a procissão
O cacete foi pesado
São Tumé levou um tranco
Que ficou desacordado
Acertaram um cocorote
Na careca de Timote
Que inté hoje é aluado

Inté mesmo São José
Que num é de confusão
Na ânsia de defender
Seu filho de criação
Aproveitou a garapa
Pra dar um monte de tapa
Na cara do bom ladrão

A briga só terminou
Quando o dotô delegado
Interviu e separô
Cada santo pro seu lado

Desde que o mundo se fez
Foi essa a primêra vez
Que Jesus foi pro xadrez
Mas num foi crucificado

Cordel Do Fogo Encantado
Composição: Chico Pedrosa