18 maio 2009

Agreste

Se é certo que o nosso trajecto estava destinado ao litoral do Brasil, isso não significa que o interior não nos atraísse. Pelo contrário. Mas, olhando para o mapa do país e sabendo a sua área, sempre achámos que é precisa uma dose muito maior de atrevimento para nele entrar. O litoral, por muito que tenhamos saltado uma ou outra praia, ou ignorado, voluntária ou involuntariamente, algumas areias, enseadas e ilhas, é um percurso traçado e fácil de definir. Grosso modo, é seguir o mais encostado possível ao mar. O interior, não. É um lampejo de sorte ou de circunstâncias. Entrar no interior da Bahia ou, mais profundo, em Minas Gerais? E porque não em Espírito Santo, ou noutra paisagem qualquer?

Mas dois meses e meio de praia foram, certamente, um incentivo para nos decidirmos. De Porto de Galinhas, em vez de previsivelmente continuarmos para Norte, inflectimos por instantes para o interior, em direcção ao Agreste. Não é longe, não se iludam. São uns meros 130 km de Recife, subindo a Serra das Russas e entrando na Zona da Mata, mas que mostra um Pernambuco muito diferente e genuíno.

A sorte, desta vez, fez-nos escolher a cidade de Caruaru, famosa pelo seu mercado diário de artesanato com dois hectares, entreposto das obras do Sertão antes de chegarem ao resto do país e do mundo. Aproveitar para conhecer uma fazenda era o ideal. E assim descobrimos, numa trivial pesquisa na net, o Hotel Fazenda do Engenho da Pedra do Rodeadouro. Lá chegámos, depois de uma pesquisa menos fácil pelas estradas e cidades que unem Bezerros a Bonito. Estrada de chão, esventrada pelas chuvas recentes, ermos em que é inacreditável como alguém lá vive, gado a pastar, boiadeiros a cavalo. No meio de um vale tão verde que parecia artificial, lá descobrimos a fazenda, aninhada aos pés de 700 m da imponência da pedra do Rodeadouro.

À nossa espera, café, caldo de cana, pão doce, bolo de macaxeira. E um conversador nato, sertanejo que mora e trabalha em Recife mas que encontrou aqui o sentido da sua vida. 79 hectares tem a fazenda, 40 cabeças de gado, 12 cavalos de montaria, área de cultura biológica, cachoeiras, piscinas desviadas do curso do rio, 12 chalés espartanos. Em apreciação está o pedido para que a fazenda seja considerada Reserva Particular de Património Nacional, por ainda manter 7 hectares de Mata Atlântica primária, sobreviva das plantações de cana-de-açúcar que desde há décadas dizimam o verde autóctone. E em projecto está também a recuperação do engenho, posto de lado pelo anterior proprietário.

Do inúmero pessoal da fazenda, sente-se a simpatia de pessoas simples, que nasceram e se criaram no Rodeadouro, cabras-machos e mulheres de labuta. Pessoas que definem a sua vida em 2 minutos, desde que nasceram até àquele dia, mas a quem o trabalho e a honra dizem muito. Do encarregado pelo hotel e pela plantação de inhame, ouvi o melhor resumo da dedicação com que trabalha todos os dias, das 5 à meia-noite, quando falou do patrão: “Ou eu vejo o enterro dele, ou ele vê o meu. Deus quem sabe.”

O cenário é esmagador. A pedra do rodeadouro não é filha única, compartilha as atracções com irmãs menores, mas igualmente imponentes, verdes e brilhantes, quando a pedra parece espremer água do seu interior e deixa a superfície molhada e deslizante. Valeu a pena abrir a porta às 6:00 da manhã e deparar com tão magna generosidade da natureza.

Conta a História que o seu sopé serviu de refúgio a um grupo de sebastianistas, no princípio do século XIX, movimento que fomentava a ignorância do povo e se aproveitava das carências da seca e da vida árdua do interior. Por pôr em causa Igreja e Estado, foi alvo de um dramático massacre em 1820. Ainda hoje se diz que uma caverna guarda os restos dessa chacina.

Testemunhas desses momentos, as encostas aliviam-se mais abaixo e convidam as vacas ao pasto: “De manhã, já acordam cedo e esperam a ordenha. Aí ,solta elas no pasto. Elas sai e costura a serra, de lado a lado. Aí, vão subindo. Quando fica de noite, elas já sabe e volta para casa. Aí, o cabra tuge elas e elas entra toda no curral.”

Houve direito a ordenha e a leite morno acabado de sair da teta, às primeiras horas de um bezerrinho, a passeio a cavalo, a banho de cachoeira, a passeio em pau-de-arara e na boleia do camião, a trilha pela montanha e pela mata, a pensão completa com comida caseira feita da produção própria.




Só não houve cantoria ao serão, para completar a ideia estereotipada que o nosso imaginário das novelas nos criou. Mas ouviu-se Luiz Gonzaga pirateado, o pai do Baião e do Forró e fiel cantador da realidade nordestina.

1 comentário:

  1. Vocês chegam cá e têm de editar um livro, com estas fotos belíssimas e estes textos maravilhosos. Andem já :)

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